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Um Porre de Shakespeare

  • Frank Abreu
  • 14 de jul. de 2024
  • 4 min de leitura



O espetáculo Drunk Shakespeare nasceu na Inglaterra, alcançou os Estados Unidos e se espalhou pelo mundo. No enredo da peça, atores pertencentes à Sociedade Literária do Velho Bardo Bêbado se encontram periodicamente para beber e celebrar o bom e velho Will. Logo de cara, um dos atores é escolhido para beber algumas doses de um destilado qualquer e terá que interpretar seu papel em estado de embriaguez.


Drunk Shakespeare desembarcou no Brasil pela primeira vez com o nome de Shakespeare Embriagado. Sob a direção do respeitado e experiente Dagoberto Feliz (um dos fundadores do grupo Folias), a montagem optou por um bar como espaço teatral e a peça interpretada pela Sociedade Literária do Velho Bardo Bêbado era Hamlet.


Confesso que de início a ideia do espetáculo não me atraiu, especialmente porque a sinopse de Shakespeare Embriagado diz coisas como "Com o álcool, as tragédias de Shakespeare se tornam comédias." Existem muitas paródias de peças do Bardo e eu tenho muita curiosidade em conhecê-las, mas a ideia de uma plateia rindo porque um ator não consegue dizer o texto pois sua língua está adormecida pelo álcool só me faz pensar em desperdício de tempo e dinheiro.


Então uma segunda versão do espetáculo estreou em São Paulo com o título Um Porre de Shakespeare, sob a direção de Zé Henrique de Paula.  O diretor escalou os atores do seu Núcleo Experimental de Teatro para interpretar Macbeth.


Minha opinião sobre rir de um ator bêbado errando as falas de uma tragédia ainda era a mesma, mas… Eu vinha de uma sequência de três ótimos espetáculos dirigidos pelo Zé Henrique de Paula: Brenda Lee e o Palácio das Princesas, Codinome Daniel e Once - O Musical (esta, uma versão para o palco, via Broadway, do belo filme irlandês que no Brasil se chamou Apenas Uma Vez). Então eu pensei: se o Zé Henrique decidiu trazer o espetáculo para o Núcleo Experimental é porque a brincadeira é séria. Fui ver Um Porre de Shakespeare e não me arrependi. Foram tempo e dinheiro bem gastos!


Um Porre de Shakespeare usa o recurso da peça dentro da peça. Na primeira delas, somos apresentados aos integrantes da Sociedade Literária do Velho Bardo Bêbado. Eles iniciam um ritual de invocação do espírito Shakespeareano. Neste ritual, um dos atores é sorteado para tomar quatro doses de cachaça (sobem para seis ao longo do espetáculo). Uma pessoa da plateia é convidada a provar da bebida e comprovar sua autenticidade. O ator ou atriz que se encharcou de álcool funcionará para o elenco como um canal de acesso ao espírito do bom e velho Will.


Então, inicia-se a segunda peça: Macbeth. E aqui, é preciso dizer, o que vemos em cena é realmente a peça de Shakespeare, com todo o seu enredo intrincado e suas falas consagradas. A diferença, obviamente, é o tom da montagem. O tom grave que a tragédia exige jamais será alcançado plenamente com um ator bêbado em cena, pois todo o elenco terá que improvisar para manter a peça nos trilhos quando o colega embriagado se atrapalhar. E é claro que o improviso vai gerar risos.


É possível perceber, ao longo do espetáculo, que alguns "improvisos" são roteirizados. Nas falas de todos os personagens existem momentos em que o texto parece dizer: "se você for o bêbado da noite, é aqui que você brilha; se estiver sóbrio, siga em frente." Se assim for, não estamos diante de uma peça dentro da peça, mas sim de duas peças encenadas em paralelo: ora estamos em Um Porre de Shakespeare, ora em Macbeth.


As peças se alternam sem aviso prévio: se num momento ouvimos coisas como "Alexa, toca bossa nova", pamonhas de Piracicaba ou perfumes Jequiti, logo em seguida podemos ouvir Lady Macbeth dizendo: "Já amamentei, e sei como é bom amar a criança que me suga o leite. E, no entanto, eu teria lhe arrancado das gengivas desdentadas o meu mamilo e, estando aquela criancinha ainda a sorrir para mim, teria lhe rachado a cabeça tivesse eu jurado fazê-lo".


Essa trágica viagem cômica e alucinada tem 18 personagens e cada um dos seis atores em cena interpreta um "combo" que varia de um a quatro personagens. No total, o elenco tem sete atores e atrizes, mas aquele que bebe numa sessão não trabalha na seguinte. Dessa forma, os papéis precisam ser redistribuídos a cada apresentação. A primeira consequência desse rodízio é que cada artista precisa saber interpretar dois "combos" diferentes de personagens. A segunda é que as várias combinações resultam em um espetáculo novo a cada apresentação.


Fui assistir Um Porre de Shakespeare na esperança de ver a bela e talentosa Bruna Guerin atuar embriagada mas, para minha tristeza, ela tinha bebido no dia anterior e não atuaria na minha sessão. No entanto, para minha felicidade, quem estava no papel de Macbeth era Luciana Ramanzini. Sim, uma mulher baixinha e magra interpretou o valente general que tinha acabado de vencer uma guerra. E que show de atuação! Luciana Ramanzini é uma gigante no palco.


No dia em que assisti à peça, o sorteado para entornar a cachaça foi o ator Cleomácio Inácio. Além de uma das bruxas e do capitão, ele fez Lady Macbeth. Sim, um homem barbudo interpretou a mulher que racharia a cabeça do próprio bebê. Não vou julgar a interpretação de um ator bêbado. Ele fez lá sua graça e disse as falas importantes que deveria dizer.


O cenário, idealizado pelo diretor Zé Henrique de Paula, deixou o público bem próximo da cena: a peça se desenrola num corredor formado pelos espectadores e frequentemente os atores tocam e brincam com as pessoas. Num certo momento, quando o álcool já tinha subido, Cleomácio Inácio deu um salto bem na minha frente e caiu abrindo um espacate violento. No susto eu gritei baixinho: "Chama o SAMU!"


O susto passou, mas o bom espetáculo que assisti ficou. Valeu o tempo e o dinheiro.

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Um Porre de Shakespeare foi assistida em 8 de julho de 2024 no Teatro Núcleo Experimental.

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